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segunda-feira, 19 de julho de 2010

O cachorro vira-latas


Kafu, cão que me acompanhou por vários anos.


Texto publicado no blog: www.jairclopes.blogspot.com em abril de 2009.
Ao cão, quando abandonado pelo dono ou apenas sem moradia, costumamos chamá-lo de vira-latas. Mas o que é, realmente, um vira-latas? Na verdade e antes de tudo é um sobrevivente, é o animal que a despeito da fome, do frio, do calor, da chuva, da falta de vacinas e dos cuidados mais elementares, sobrevive, multiplica-se e se perpetua saudável se for deixado a vontade. É o animal que os veterinários costumam classificar como SRD – Sem Raça Definida – mas que tem os melhores requisitos genéticos para sobrevivência sob quaisquer condições, é o cão primordial.
Desde que o homem, provavelmente há mais de dez mil anos, domesticou o lobo asiático, procurou desenvolver nos descendentes obtidos a partir das matrizes lupinas, características ou qualidades tais que cumprissem certos requisitos como tamanho, agilidade, força, beleza, inteligência ou resistência, os quais se destinavam a auxiliar o homo sapiens na sua difícil tarefa de sobreviver. Essa manipulação do cão original, o qual, pelas características, poderíamos chamar de vira-latas, originou as centenas de raças que conhecemos.
Naturalmente em épocas e locais distintos, plantas as mais diversas e outros animais como o boi, o cavalo, o asno, a galinha, o porco e o peru também foram domesticados e utilizados como alimento, como fonte de matéria prima para vestimentas ou confecção de abrigos ou, ainda, como “ferramenta” nas mais diversas atividades relacionadas com a sobrevivência, construção da civilização ou com a guerra. Mas, afinal, o que é domesticar e como se obtêm espécimes diferenciados e úteis para os fins desejados? Domesticar significa, “adotar” o animal ou vegetal selvagem, criá-lo em condições controladas sob supervisão de modo a torná-lo dependente do ser humano para sobreviver, ao mesmo tempo em que se reproduz até com mais facilidade e fertilidade do que na natureza. Já, para se obter variedades de animais ou vegetais diferenciados e úteis para uso humano, usa-se o cruzamento seletivo. Dos descendentes nascidos de animais ou vegetais domesticados, escolhem-se aqueles indivíduos os quais têm as qualidades que desejamos. Assim, para exemplificar: de várias ninhadas de gatos, escolhemos aqueles que tem pelagem maior, mais abundante, os quais, supostamente, estão melhores aparelhados para enfrentar climas frios. Cruzando-se esses animais peludos, com o tempo, depois de muitas gerações sempre cruzando os mais peludos entre si, obtemos uma nova “raça” de gatos que chamaremos de Angorá, por exemplo.
No paleolítico, quando as tribos humanas de caçadores/coletores começaram a fixar-se na terra tornando-se criadores/agricultores o fator domesticação não só esteve presente como foi fundamental para a criação dos primeiros aglomerados que se tornariam vilas e depois cidades, no decorrer. Da domesticação para a seleção genética ou cruzamento seletivo o passo foi quase automático, se impôs que os homens selecionassem os melhores dentre os disponíveis, ou seja, cruzavam-se os cavalos e éguas mais fortes; escolhiam-se para o plantio as sementes maiores das espigas mais robustas; plantavam-se as mudas mais resistentes ao inverno rigoroso; cruzavam-se plantas com características diferentes esperando obter-se uma variedade descendente melhor que os pais, por exemplo. Desses cruzamentos forçados e plantios escolhidos nasciam os rebentos que se tornariam as variedades predominantes e que atendiam melhor as necessidades humanas. E o homo sapiens viu que isso era bom. Será que, a longo prazo, era bom mesmo?
Vejamos: O homem, sem saber, ao fazer a escolha de uma ou mais qualidades de uma espécie, estava selecionando os genes responsáveis por essas qualidades e negligenciando outros genes, ou seja, pode ser que ao selecionar a variedade de trigo que tem as sementes maiores e as espigas mais robustas, estará sacrificando a resistência à seca dessa mesma planta; o cavalo mais forte, aquele que puxa o arado o dia todo sem cansar, pode ser suscetível à gripe ou ser infértil; a galinha que põe todos os dias pode ser aquela que não resiste ao frio do inverno; e assim por diante. Na seleção genética não há almoço de graça, “ganha-se” de um lado e perde-se de outros, é como vender a alma ao Diabo. É facilmente compreensível essa assimetria entre as qualidades das espécies artificialmente escolhidas.
Durante milhões de anos a natureza “escolheu” através da seleção dos mais aptos, os melhores elementos das espécies, de forma que esses indivíduos passaram seus genes para os descendentes sempre melhorando a linhagem; se um rebento da espécie não resiste ao calor, por exemplo, tende a morrer no verão e, geralmente, não deixa descendentes. Por muitos milhões de anos o frio, o calor, o sol, os ventos, as chuvas, as erupções vulcânicas, os movimentos sísmicos, as marés, a competição entre espécies, os solos áridos e fracos, os solos úberes, os microorganismos nocivos, os insetos, os predadores, as secas, moldaram as espécies existentes, que são as melhores porque estão perfeitamente aptas a viver e se reproduzir nas condições existentes, e não porque produzem a fruta maior e mais suculenta, ou porque têm altura exata para serem colhidas pelas colheitadeiras equipadas com GPS.
A natureza dotou suas criações de um “pacote” genético com todas as melhores qualidades possíveis, criou o cachorro vira-latas de todas as criaturas da fauna e da flora. Já, a “melhoria” das espécies feitas pelo homem, que se desenvolveu e permeou a civilização do começo da sociedade até os dias modernos, nada mais é do que a fragmentação do “pacote” criado pela natureza, de modo a aproveitar algumas partes e descartar outras.
Resulta que hoje são milhões de novas variedades de animais e vegetais muitíssimo produtivos, mas extremamente “especializados”, seres perfeitamente adaptados a um clima específico, a um solo específico, a um ciclo sazonal específico, a uma geografia específica. Mais ainda, nos anos sessenta do século vinte, o movimento científico “Revolução verde” iniciou o maior esforço mundial no sentido de desenvolver novas variedades adaptadas aos mais diversos climas, com o intuito de “debelar a fome” no planeta. Novas variedades de trigo, aveia, arroz, grão-de-bico, soja, centeio, sorgo, milho, tomate, batata e girassol foram criadas, milhares de cultivares artificiais dessas espécies inundaram as lavouras em todos os continentes. Se acabou com fome em algum lugar deve ser num planeta desconhecido, porque na Terra não foi.
Acontece que, seja pela incúria e falta de visão da raça humana, seja porque a temperatura planetal está mudando para obedecer a uma apenas suspeitada oscilação climática natural que acontece a cada dezena de milhares de anos, muitas espécies criadas através da seleção genética estão morrendo, não têm capacidade adaptativa para enfrentar mudanças não programadas, as pequenas variações espúrias que estão ocorrendo no clima são o bastante para exterminar essas variedades ultra produtivas, mas “fracas” geneticamente, criadas pela mão do homem. Nos Estados Unidos, Austrália, Japão, Inglaterra e França já foram registrados inúmeros cultivares que não conseguem produzir, ou tem a produção reduzida por causa das mudanças climáticas e alterações na salinidade do solo. E não adianta desenvolver novas espécies a partir destas, estas não têm “memória” climática de longo alcance, os genes que as tornavam imunes às oscilações milenares de clima, perderam-se em algum ponto de sua história moderna a mercê da manipulação humana.
Que fazer então? Procurar o CACHORRO VIRA-LATAS! Procurar aquelas espécies selvagens que deram origem a essas modernas, espécies que têm, na sua carga genética, todas as informações necessárias à sobrevivência de longo alcance em quaisquer condições climáticas e adversas. Existem vários órgãos civis preocupados com a perda definitiva das sementes antigas, botânicos, geneticistas e outros cientistas estão numa corrida dramática em busca de sementes das espécies selvagens em todo o mundo.
Sementes que foram conservadas através das gerações pelo mundo afora, passando dos avós para os filhos, destes para os netos, dos vizinhos para outros vizinhos e assim por diante, as vezes por centenas de anos. Os cientistas esperam encontrar e preservar as amostras das sementes que puderem fornecer os traços genéticos necessários à luta contra a mudança do clima, do solo e ao ataque de doenças que causam extermínio.
A Noruega inaugurou no arquipélago de Svalbard, no Ártico, aquilo a que chama a “Arca de Noé” do reino vegetal, para preservar a diversidade vegetal do planeta, ameaçada por catástrofes naturais, guerras e alterações climáticas. Escavado na rocha gelada, a mil quilômetros do Pólo Norte, este “cofre” pode guardar sementes congeladas por 200 anos, mesmo no pior cenário de alterações climáticas e se os sistemas mecânicos de refrigeração falharem. Jens Stoltenberg, primeiro-ministro norueguês, disse que esta medida defende “os blocos de construção da civilização” de forças que estão ameaçando a “diversidade da vida que sustenta o nosso planeta”. Mais de cem países já enviaram cem milhões de sementes para Svalbard: arroz, milho, trigo, alface, batatas, grão-de-bico, entre outras espécies. As sementes antigas encontradas nos mais esconsos lugares do planeta estão sendo divididas em três partes: uma vai para o plantio normal para preservação das espécies através da produção de mais sementes; outra é dirigida a laboratórios que estudarão sua herança genética e tentarão aproveitar suas qualidades hibridizando-as a outras variedades modernas, melhorando estas; a última destina-se à “Arca de Noé Botânica”, onde, espera-se que elas permaneçam preservadas por 200 anos, como uma espécie de depósito bancário de emergência, que será usado no caso de perda da diversidade biológica.
Na verdade, o homem encontra-se olho-no-olho com o monstro de fauces escancaradas que criou. Uma catástrofe inimaginável que pode dizimar a civilização está para acontecer e o ser humano conta apenas com o CACHORRO VIRA-LATAS para salvá-lo. Isso, que nem falamos ainda das plantas geneticamente modificadas que podem vir a ser outra ameaça num futuro próximo! JAIR, Floripa, 23/04/09.

3 comentários:

Otelice disse...

Parabéns pelo texto. Muito bom!

Luísa Nogueira disse...

Como sempre, Jair, seus posts nos dão uma visão geral e completa daquilo que você tão bem sabe retratar! Parabéns, amigo!

Almirante Águia disse...

Jair,
A verdade não é sutil, a humanidade exagera em certos aspectos da ciência, manipula-se e altera-se qualquer estrutura, muitas vezes baseados em ideais utópicos, que aliados ao crescimento demográfico, ao medo da fome, e a ganância pelo capital, provocam o descontrole das cadeias naturais.
Agora a pouco lia em um site científico (Inova Brasil), sobre a descoberta de uma película “atóxica” para os seres humanos, que impedem os mosquitos de se reproduzirem sobre a água, depois descobriu-se que a substância eliminava também as algas dos tanques, mais tarde já se percebeu que pode eliminar manchas de óleo, por meio de aglutinação. Um dos testes do produto foi realizado no espelho d’água do planalto.
Pois bem, é um produto inovador, não há o que se discutir quanto a isso. Porém a substância segue sendo aplicada empiricamente, envolvendo-se com o meio ambiente, sem que se conheça de fato o potencial e campo de ação, ou as conseqüências futuras para o meio natural.

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