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domingo, 17 de abril de 2011

O Cavoucador



Texto publicado no blog www.jairclopes.blogspot.com em 20/03/11.

(Uma homenagem a Mia Couto, escritor moçambicano)

Estranhamente era a primeira vez que Joel e eu andávamos por aquelas lonjuras, não nos déramos conta do quando tínhamos caminhado até chegar num local cuja feição fugia às familiares parecenças dos campos vizinhos à Cidade, nossos conhecidos desde sempre. Aqui, o verdoengo dos Campos Gerais dera lugar a um castanho de terra sem viço, árida mesmo. Só capim ralinho se dava ao trabalho de tentar cobrir aquele chão seco que rangia debaixo de nossos pés, pisoteantes cansados. Morros e morrotes ondulantes se viam até não mais ver, num semsentido de repetições contínuas.

Distraídos, proseávamos papo sem fundos quando ruídos subitantes interrompem nossa conversa desprevenida, pareciam vozes trás o pequeno monte, logo à nossa frente. Subimos com cuidado, meio receosos. Era um homem que, do outro lado do morrinho, cavava um imenso buraco, resfolegando com fúria insana sobre a terra crestada e renitente. A estranha cova era muito funda e encompridada de forma que era impossível ver onde iniciava, se é que tinha uma origem. Parecia que o cavoucador queria repartir o Planeta ao meio, coisa estranhosa.

Gritamos, solicitando-lhe atenção. Do fundo do buraco o esquisito homem, também um tanto surpreso com nossa aparição desanunciada, pediu que esperássemos. Veio subindo de vagarinho com cuidado de mestre que acarinha sua obra primorosa. Ao se aproximar, talvez enxergando a interrogação em nossos semblantes, em nossas bocas em forma de “O”, esclarece: - Estou construindo um rio. Não podíamos ficar mais boquiabertos, mas o homem, sem qualquer sinal que estivesse pilheriando, insiste. Sim, por aquele leito afundado e comprido haveria de passar um rio, para isso só faltaria água. E todos sabemos, não se fabrica água, esta vem do céu. As águas encheriam o rio que escorreria pujante até o oceano distanciado, carregando peixes e barcos. As gentes ribeirinhas agradecidas e esperançosas em suas vidas aguadas, festejariam felizes para sempre.

Era um sonhador tão seguro de seus sonhos que havia começado a cavoucar no terreno de sua própria casa. Sua família, estranhando aquela conduta insensata, o deixara, mas nem por isso ele desistira de seu onírico sonho, cada dia mais cavava e mais tinha certeza de seu propositório: um rio ali nasceria, era uma verdade cruenta. - Já posso ver um fiozinho de água que surge tímido lá no fundo, dizia-nos euforizado. O sujeito desafiava a ordem bem ordenada das coisas que a natureza havia criado. Não desistia, cavando dia e noite, só parando para dormir, havia transposto vales e colinas, vencido barrancos e ali estava, frajolento. Seu “rio” tomava forma, sua obra entrara nos arremates. Agora, cansado, sentado à borda, cuidava com orgulho de sua criação, achava que dobrou a natureza, sente-se o mais realizado dos viventes vivos.

Aquilo nos pareceu um projeto muito louco, não era factível trazer à vida um rio daquela forma. Construir rios! Onde já se viu tamanho despautério assim herético! Para nós era hora de deixar para trás aquela necedade e voltar sobre nossas passadas até onde não existem pessoas doidas daquele jeito desatinado. Não déramos ainda dois passos e o céu se fechou em nuvens enfarruscadas e raiventas. Começa uma tempestade torrencial que parece oriunda da liquefação do teto que chamamos de céu. A borrasca assoma com violência inusitada, relâmpagos relampejam açoitando a paisagem indefesa. Sem haver como nos abrigar da catadupa que arremeteu diluviando sobre todos e sobre tudo, ficamos parados vendo a enxurrada que se formava. Nos ajuntamos, a medo, tremendo, no derradeiro e final gesto dos que estão a mercê dos elementos exaltados, ameaçadores.

De repente, o homem nos aponta o valão que se enchia, as vagas furiosas encontraram aquele leito vago e o tornaram ancho em minutos mínimos. O escavador ergue os braços para cima como se querendo agradecer àquelas nuvens ubérrimas que lhe haviam completado a obra primeira. Corre desabridado em direção ao seu redivivo rio e se lança naquelas águas corcoveantes e maldosas. É a última vez que o vemos.

Em seguida, a virulenta chuvarada cessa e o curso d’água, já mais conformado ao leito que o contém, avança decidido e marulhante com fluidez oleosa em direção ao horizonte longínquo. O cavoucador havia construído um rio. JAIR, Floripa, 15/03/11.

3 comentários:

Luísa Nogueira disse...

Boa tarde Jair!
Rio, chuvas, sonhos... E nos sonhos navegamos nos rios da vida...
Lindo conto!

JAIRCLOPES disse...

Querida Luiza,
Sou crnista por vocação, mas, vez ou outra, adentro a ceara da ficção e sai algo como este texto. Obrigado por comentá-lo.

Otelice disse...

Bravo, bravo, bravíssimo.
Amei a história e a narrativa envolta numa linguagem belíssima que me encantou.Parabéns, poeta!
Abraço.

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